sexta-feira, março 03, 2006

Capítulo VIII

Guilherme olhou novamente os diários, antes de voltar para a sua vida. Era sábado, não tinha de trabalhar nesse dia.

"Acho que o melhor que tenho a fazer é arranjar algo diferente com os miúdos." - Pensou sozinho.

“Tenho vivido para a descoberta, tenho sobrevivido e quase esquecido o que de mais importante me resta na vida, os meus filhos” – com mais um bater de mãos ele levantou-se da cama e foi tomar um banho.

Decidiu que era um bom fim-de-semana para ir dar a conhecer aos seus filhos a terra onde Ana tinha nascido. Convidou Bernardo para ir com eles, pois este ultimamente passava muito tempo sozinho.

Saíram de manha com o objectivo de irem almoçar com os pais de Ana, e assim seria a primeira vez que eles iam visitar os avós à terra deles. João e Carolina ficaram entusiasmados com tal visita e preparam-se para a partida em 15 minutos.

Guilherme, apesar de tudo, e de querer passar muito mais tempo com os seus filhos, levou um dos diários para ler quando se deitasse.

Chegados a Boticas, concelho pertencente ao distrito de Vila Real, terra de onde Ana era natural, os miúdos ficaram encantados com o rio, com as paisagens e com as histórias que o pai lhes contava.

Historias que a mãe nunca tivera oportunidade para lhes contar, aquelas conversas que Guilherme estava a ter com eles, eram vivências da sua Ana e sobre o que ela tinha vivido ali.

Agora em posição privilegiada para experimentarem as mesmas sensações que a mãe, quando tinha a idade deles, Carolina e João nem esperaram que o carro parasse para saltarem dos bancos de trás da carrinha do pai e correrem para os braços da avó Irina e do avô Carlos.

Era a primeira vez que estavam juntos desde o funeral da mãe.
O almoço foi a famosa e deliciosa vitela assada no forno a lenha preparada como só a Dona Irina sabia. Rapidamente os miúdos se puseram a fazer a típica “algazarra” infantil e a Avó “escoltou-os” até ao pátio, onde pôde participar e, acima de tudo, recordar a alegria das crianças que há muito faltava naquela casa.

Enquanto isso, eu e o Bernardo fizemos companhia ao Carlos ao trago de uma aguardente caseira.

- Há muito que vos esperava. Estava sempre a comentar com a Irina as saudades dos catraios – disse o Carlos com um olhar satisfeito.

- Não tem sido fácil conciliar o trabalho, os miúdos e o tempo livre. Tem sido sempre uma correria. Os miúdos estão cada vez mais traquinas. E sozinho… contra dois… Esgotam a pouca força que me resta quando saio do hospital.
- Pois, acredito que não seja fácil. Eles estão grandes e fortes, cheios de energia. E como é que eles têm conseguido ultrapassar a ausência da mãe? – perguntou Carlos com ar apreensivo.

- Por vezes ainda dou com a Carolina no nosso quarto a mexer nas coisas da mãe com as lagrimazitas nos olhos. Mas o João tem-se mostrado muito forte. Admito que por vezes ele é mais forte do que eu e tem-me ajudado imenso com a irmã.

- Então e tu? Como é que te estás a safar?

- Como posso. Dediquei-me às crianças e ao meu trabalho, na esperança de que isso me ocupasse o pensamento… mas devo admitir que me sobram sempre uns bocadinhos para a recordação. Parece quase um pesadelo e só preciso acordar, mas não consigo. Mas certamente é algo que tanto o Carlos como a Irina conhecem…

- Tem sido complicado… complicado… - disse Carlos com a voz rouca de quem reprime uma montanha de sentimentos - mas a vida segue em frente e nós com ela – terminou com um gole de aguardente.

- Claro – disse eu – ah… mas então e como vai a vida por aqui? Sabe, às vezes tenho um pouco de inveja deste sossego. Acho que me faria mesmo muito bem… e ao mesmo tempo, tenho medo de onde o meu pensamento me possa levar.

- Para as crianças seria bom virem cá mais vezes – disse o Bernardo, quebrando o seu silêncio, por entre olhares às montanhas fora da janela.

- Seria óptimo para ti e para eles – continuou ele – acho que o coraçãozito deles continua a sofrer perto das coisas da mãe. Precisam de férias.

- A Irina adoraria tê-los por cá, e eu também! – disse Carlos, com a expressão típica de avô babado com sede de juventude por perto, principalmente dos seus netos.

Carlos com o seu ar sempre distante, rapidamente voltou a falar das saudades que sentia e das conversas constantes com Irina sobre os últimos dias de Ana e as últimas coisas que haviam falado.