quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Capítulo V

Eu tinha sete anos quando, fomos de férias pela primeira vez para o Alentejo, iamos para casa de uns amigos dos meus pais que moravam em Évora.
Lembro-me da viagem, demorávamos uma eternidade a chegar lá. Viajamos durante a noite, saímos de casa, deveriam ser umas quatro horas da manhã.
A minha irmã dormia recostada no banco de trás. A minha mãe passava-me a mão pelo cabelo ao mesmo tempo que me contava uma história de quando era jovem. O meu pai agarrado ao volante, lá abria o vidro de vez enquando para fumar mais um cigarro.
O meu pai, André de seu nome, era um homem alto, cabelo castanho, olhos grandes e expressivos. Uma pessoa rígida, obstinada por regras, conservadora e metódica mas que acima de tudo adorava a nossa família, fazia tudo para nos proteger e para nos manter sempre unidos.
A minha mãe, que se chamava Lúcia, tinha cabelos claros, olhos verdes, umas mãos de donzela, uma pele macia e clara, e um coração de ouro. Adorava cuidar dos seus filhos, tinha largado tudo por nós, deixou de trabalhar aos vinte anos, assim que a minha irmã Amélia nasceu, só para conseguir ter tempo para cuidar dela da forma que ela achava a correcta.
Quando ao passarmos na região de Coimbra o meu pai, encosta o carro, e acorda-nos com muito carinho para vermos o nascer do sol.
O céu parecia mudar de cor a cada segundo que passava, ouvia-se o cantar dos pássaros que voavam numa dança desenfreada. Tinha sido o primeiro nascer do sol a que assistira. Era mágico, era belo, até mesmo arrepiante, e como que se de um momento único se trata-se, como que se não houvesse amanhã, um colo da minha irmã e um sussurro no meu ouvido diziam – O mais importante não é esperarmos que o sol nasça, é que ele nasça para todos, e sempre com um enorme brilho.
Palavra que ainda me faz pensar, mas que hoje compreendo, com a experiência da vida, com o que conheço de mim, mas acima de tudo com o que conheço do mundo.
No momento em que o meu pai nos acordou, interroguei-me do porquê de termos parado. Mas de seguida com a perspicácia de um miúdo de sete anos, percebi que teria um motivo especial, percebi que com o nascer do sol a magia da vida e do amor existiam, percebi ao sentir o abraço ternurento que recebi da minha irmã, percebi ao ver o carinho no toque apaixonado dos dedos dos meus pais.
Seguimos viagem, a minha cabeça estava a ser bombardeada de perguntas, pois não sabia o que pensar, não sabia o que dizer, não sabia o que perguntar.
O resto da viagem foi realizada em silêncio, como se estivéssemos todos ainda a ver o nascer do sol, como se a brisa da manhã nos tivesse selado a boca e aberto os corações. Ninguém sentia sono, ninguém queria saber de dormir, ninguém queria perder a primeira palavra dita depois daquela experiência maravilhosa. Até que a Amélia, agarra-me a mão e coloca um sorriso nos lábios.
– Então amor como foi ver o nascer de um dia? O que sentiste? Conta…
Fiquei sem palavras, com uma vontade de dizer tudo aquilo que sentia, mas simplesmente tive coragem e força para dizer – UAU!
Uma gargalhada dentro do carro. Imagino que tenha sido, porque ninguém espera uma resposta destas de uma criança, talvez tenha sido, porque era exactamente isso que eles estavam a pensar também naquele momento.
E, logo em seguida, como se o momento voltasse a acontecer, como se o sol tivesse voltado a nascer, o silêncio voltou a ser a palavra.
Chegamos a Évora era quase meio-dia. Um calor abrasador, os amigos dos meus pais esperavam-nos na entrada da cidade e conduziram-nos até casa deles, onde ficamos nos dias que se seguiram.
Nessa tarde ficamos a descansar em casa do sr. Rui, ele tinha dois cavalos, e prometera-me que me ensinaria a montar, se os meus pais assim o permitissem.
Com um olhar de reprovação, ou apreensão, Amélia sorriu-lhe antes de lhe perguntar com tom preocupado. – Não será perigoso?
– Prometo que não! – Disse o sr. Rui com ar confiante.
– De qualquer forma depois vemos se podes aprender ou não, depende de como te portares! – Respondeu o meu pai ao acender mais um cigarro.
Nos dias seguintes, andamos a conhecer Évora, recordo-me das muralhas, que na sua parte interior conservavam uma série de monumentos antigos, e uma praça, à qual a minha irmã chamou de “praça do Giraldo”, e aí me contou alguma da história da cidade.
De regresso a casa do sr. Rui lembro-me de comer uma sopa de cação que nunca mais me irei esquecer, umas migas e açorda, e uma encharcada na sobremesa.
Brincava no átrio daquela casa, quando, como todos os dias acontecia, ao serem 22h o meu pai me foi chamar para ir para a cama. Com ar contrariado, mas obediente retorqui. – Não poderei ficar mais uns minutos, eu estou de férias, amanhã não tenho escola. – Mas como de costume, tive de ir descansar, pois com mais uma explicação a minha mãe, que viera também chamar-me para me ir deitar. – Os meninos têm de se deitar cedo, pois têm de descansar para serem grandes e fortes, mas acima de tudo para ser felizes.
E com um beijo me deitei, aconchegado pelas mãos da minha mãe numa cama acabada de fechar.
Lembro-me de sentir fechar a porta, ao mesmo tempo que lembrava o que tinha acontecido naqueles dias. Não conseguia dormir, dava voltas e voltas na cama, e lembrava o nascer do sol, as palavras que Amélia me dissera naquele momento.
Acordo de um sonho, soluçava e não sei porquê, levanto-me e procuro uma luz. Abri a porta e segui o caminho das vozes, onde encontrei o meu pai e o sr. Rui a falarem de um filho, que não sabia da história, que não sabia nem tão cedo saberia. Era novo demais para perceber o que se tinha passado, e as pessoas também não sabiam.
Voltei para a cama levado pela mão da D. Rute que vinha da cozinha, com um ar cansado de quem tinha estado a arrumar tudo até aquela hora, e me encontrara ali, com os pés sem chinelos em cima do chão frio e de tronco nu.
Os dias foram passando a correr, e não me apetecia sair dali, sem que me fosse permitido sentar em cima daquele cavalo, Lasão de seu nome, sentir a sensação de estar em cima de um animal tão imponente, com umas crinas tão bem penteadas.
Na manhã que viemos embora, finalmente, consegui que esse meu sonho de quinze dias se concretizasse. Levado pelo filho da D. Rute, sentei-me em cima do cavalo mais maravilhoso que já tinha visto, aquelas passadas calmas e elegantes, aqueles movimentos suaves e delicados.
Fiquei a adorar o Alentejo, as suas terras, as suas gentes, o seu perfume e a D. Rute, senhora que trabalhava naquela casa enorme, e os seus maravilhosos cozinhados.
A saudade, do Alentejo já apertava, mas a vontade de reencontrar Bernardo que me tinha prometido uma viagem de barco quando chegasse era tão grande que adormeci para a viagem passar mais depressa.
Estranhei o facto de a viagem ter corrido tão silenciosa, mas mais tarde ao chegar a casa, quase sem parar e sem o meu pai ter dirigido uma palavra para com Amélia, eu me apercebi que algo estaria errado.
O meu pai acusara Amélia de ter permitido o interesse de Rúbem, filho da D. Rute, por ela. Dizia ele que ela devia ser uma mulher já bastante responsável e não poderia deixar que esse tipo de insinuamentos acontecesse por parte de nenhum homem.
Amélia que amava Bernardo, que amava e não queria pensar em mais nenhum outro homem, não via, nem poderia ver qualquer problema em conversar com outras pessoas, com outros homens.
A minha irmã tinha 23 anos e já terminara o curso, estava a dar aulas numa escola em Vila Praia de Âncora, e decidiu que estava na altura de sair de casa e ir viver para lá, assim que começasse o novo ano lectivo.
O meu pai que sempre quis manter a família unida, lutou para que isso não acontecesse, mas a minha irmã estaria sempre perto de casa e prometeu vir a casa todos os dias, porque o seu coração estava ali, e estaria sempre.
Não me lembro de Amélia ter falhado um dia ao seu compromisso, e de não ter vindo todos os dias, dar-me um beijo e ver os meus pais.
Mas guardo a carta que ela escreveu, e colocou em cima da mesa em nossa casa, na primeira semana que se encontrava a viver sozinha.

“Minha querida família.

Aqui estou eu, com uma caneta numa mão e um lenço na outra, para que as lágrimas que tombam dos meus doridos olhos de tanto chorar não manchem esta carta, pois o que tenho para vos dizer é importante demais, mas escrevo porque não tenho coragem para vos dizer.
É difícil estar longe, é difícil não poder ter quem se ama, é difícil largar alguém, mas seria mais difícil se soubesse que não vos poderia abraçar nunca mais.
Quero que saibam que a vossa presença, a vossa ajuda e o vosso amor é o que de mais importante tenho na vida. Vocês são os meus ídolos, quem nunca me abandonou, quem nunca deixou de me proteger, em todos os momentos e alguns, muito difíceis para todos.
A distância que nos separa, simplesmente separa os nossos corpos, separa os nossos olhares, mas nunca separará as nossas almas, as nossas cumplicidades e as nossas memórias.
Voltarei sempre, sempre que quiser, sempre que precisarem, sei que vocês têm uma porta aberta, sei que vocês nunca trairão a minha confiança, sei que vocês cuidarão de mim no dia em que eu estiver mais necessitada, mas sei que cuidarão dos meus sempre que eu não esteja presente e sempre saberão ser felizes e ensinar o Guilherme a lutar por ser feliz e, obriguem-no mesmo se ele não quiser.
Não sei se terei forças, para lutar assim como vocês fizeram, não sei se suportarei tanto quanto vocês suportaram, mas sei que confio em vocês mais do que em mim própria.
Obrigado por tudo, meus pais, minha família, meus amores. Obrigado por fazerem de mim quem sou, obrigado por me fazerem acreditar que vale a pena viver, que vale a pena ser feliz, mas acima de tudo que vale a pena amar.
Obrigado...
Amélia”