sexta-feira, fevereiro 10, 2006

CAPITULO II

Olhares encharcados de lágrimas, e com um esforço desumano para elas não deslizarem pelo rosto, gargantas apertadas que mal conseguiam respirar, mãos unidas, cabeças caídas sobre o peito, era assim que todos nos encontrávamos no dia em que o seu corpo desaparecia definitivamente do meio de nós.

No meio de tamanha dor, de tanto sofrimento lembrava-me das palavras sábias e maternais que Amélia tinha para comigo.
– Guilherme, acima de tudo respeita-te para conseguires ser respeitado, faz tudo para fazer alguém feliz, pois só assim vais conseguir sorrir a cada dia que passa. Nunca te esqueças que eu te amo e daria a minha vida para te ver sorrir.

Ironia do destino, ou não o que ela me repetia vezes sem conta acabara por se tornar na minha maior dor. Nunca pensei dizer que o maior desgosto não é perder alguém, mas sim, não superar a sua falta.

Estávamos na entrada do crematório, quando descruzo as minhas geladas mãos e as entrelaço nas mãos do João e da Carolina, prostro-me de joelhos no meio deles, suas pequenas cabeças encostam-se nos meus ombros e sorriem-me com uma face meiga e terna de quem é criança, de quem percebe a minha dor e eu a deles.

E, como com 6 anos, não entendemos muito bem estas partidas que a vida nos prepara, João também não estava a entender tudo o que se estava a passar à sua volta, então olha para mim com o seu olhar terno e cheio de duvidas.

- Papá, o que se passa, porque está toda a gente triste, onde está a Tia Mel?

Nessa altura não consigo mais conter as minhas lagrimas, sinto-as a rolar pela minha face, agarro os meus filhos com toda a minha força, como se naquele abraço colocasse todo o amor que sinto por eles.

- A Tia foi fazer uma viagem muito longa, talvez demore muito a voltar...

Fiquei em silencio por alguns segundos, e continuei.

... ou talvez não volte mais...

- Foi para junto da Mamã?

Era esta a pergunta que eu mais temia, um assunto que até àquela altura eu não tinha falado com os meus filhos e que naquele momento de tamanha dor e angustia, João se lembrou de abordar....

Sinto que chegou a hora de enfrentar todos estes fantasmas que me rodeiam, não posso ser tão egoísta ao ponto de criar ilusões dentro dos corações dos meus filhos, eles têm que estar preparados para esta realidade tão cruel, onde somos obrigados a sobreviver, sem que nunca ninguém nos tenha perguntado se queriamos nascer. Concentrei todas as minhas forças em ti, Ana, em tudo o que vivemos e prometemos cumprir, e não sei explicar o que senti mas sabia que estavas presente e finalmente consegui.

-João, Carolina, o papá tem uma história muito bonita para vos contar.

Os olhos verdes e brilhantes da Carolina ficaram penetrados no meu rosto, e com a inocência de criança, gritou.

-Conta papá, conta!

E aquele dia que era de profunda tristeza, acabou por ter um momento de descontração, dei por mim a esboçar um sorriso que desde da tua partida ninguém o tinha visto.

-Era uma vez uma rapariga, doce, bela, inteligente, misteriosa, que recentemente tinha chegado a uma nova cidade.

Quando subitamente sou interrompido.

- Como se chamava a rapariga papá.

Como que por magia, regressei ao passado e tudo o que me surgia na memória parecia real.

-O nome dela era Ana...
Não sei muito bem quais foram as palavras exactas que usei para narrar toda a nossa história, mas sei que a contei de tal forma que fiz Dela a minha deusa, o meu mais que tudo.
Havia cerca de 12 anos que eu a conhecera, por sorte fomos os dois estudar para a mesma universidade, ela para advocacia e eu para medicina (de que me servira estudar medicina, se não a conseguira salvar?!).
Estavamos numa praxe colectiva, e por estranho que pareça, alguém decidiu praxar dois cursos tão distintos no mesmo local.
Recordo perfeitamente os seus olhos verdes - olhos que a nossa filha Carolina tinha iguais - de panico por estar numa cidade totalmente nova onde não conhecia ninguém, procurando desesperadamente o apoio de alguém, Deus quis que os nossos olhares se cruzassem naquele momento e posso garantir que quando a vi pela primeira vez não me ficaram quaisquer duvidas, ela era a minha mulher, era com ela que iria casar, naquele preciso momento tive a certeza que tinha encontrado a mãe dos meus filhos!
Esta foi a parte da nossa história que contei aos meus filhos, com a promessa de que mais tarde acabaria por lhes contar toda a história do Guilherme e da Ana...