quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Uma estória em branco - CAPITULO I

Noite calma e silenciosa, somente o perfume da terra húmida se sentia no ar. Passeávamos abraçados pelo canto de uma coruja, olhávamos o horizonte como quem deseja o infinito, falávamos de todas as coisas que são levadas pelo vento.

Éramos felizes.... Naquele momento nada mais tinha qualquer tipo de significado, nada seria capaz de abalar aquela paz interior que nos invadia e que nos fazia acreditar que sim... que realmente os contos de fadas existem... e que nós, sem duvida alguma éramos a prova viva disso. Naquele momento só existia uma dúvida que me invadia o pensamento... Como tinha levado tantos anos da minha vida a encontrar-te, a descobrir o amor, a verdadeira felicidade?! Era tudo tão perfeito... o lugar ideal, a brisa leve do vento, as palavras ditas, o olhar que acompanhava o brilho do luar, o simples toque das nossas mãos que acariciavam as faces um do outro... Estaria a sonhar!? Não!! Era mesmo real, tão real como aquele canto de coruja que nos embalava, o relógio não parou e a coruja cantava...

Guardo tudo isto na minha memória, cada dia que passa te recordo e recordo todos os bons momentos que vivemos juntos, como pôde o destino ser tão cruel para nós? Como pôde arrancar-te da minha vida de uma forma tão cruel, da qual nós não tivemos forma de fugir?... Fazes-me tanta falta, se tu pudesses saber as vezes que penso em ti, a cada dia que passa... mas dou a mim mesmo um último fim, fui e ainda estou a ser escravo do nosso amor, amor que não queres aceitar, que não queres ver...sinto-me frágil, sinto-me perdido e já sem forças para lutar pelo que eu próprio acredito, pelo que eu próprio quero, mas ao Fundo não volto, à escuridão não volto, ao silêncio e ao medo também não volto...Quero um Fim mas quero e acredito num inicio e é neste fim que dou a mim mesmo que vejo e começo um Início....

Quero que a minha vida deixe de ser escrita pelas nuvens, quero o meu sorriso me leve para longe de nós, quero que as tuas palavras ditas outrora sejam feridas jamais saradas no teu corpo, quero ... já não sei se quero ... pois neste momento exijo ser feliz longe de ti, perto de quem me quer, perto de quem me chama, com um chamar amargo de quem não me pode ter.

Acordei, mais uma noite tinha passado, o nosso sonho, sonhado imensas vezes, tinha-se repetido mais uma vez, na minha enlouquecida memória.
Encostado na cama do hospital tinha flashes do que havia sido a nossa história, lembrados pelas fotos que me haviam sido mostradas pela Amélia. Tudo tinha parecido tão real, mas afinal quem era eu?, perguntava-me ao olhar para o espelho após o enxaguar do rosto com o algodão humedecido...

Foi então que percebi, que a minha vida tinha mudado, que o meu ser tinha renascido, uma nova oportunidade de ser feliz tinha surgido na minha vida. Mas como? Será que sozinho consigo encontrar uma solução?
Não consigo explicar como, talvez pela força de querer viver, arranquei todos os fios e agulhas que penetravam o meu corpo, e como que um fugitivo, sai daquele hospital e naquele segundo percebi que tudo ia mudar. Todas essas recordações que tinha do nosso passado deixaram de ser sofrimento e deram lugar a um enorme sentimento de esperança...

Dei por mim a vaguear pela rua como um mendigo, mesmo assim continuei com um sorriso rasgado no rosto e uma felicidade que transbordava pelo meu olhar, como uma criança inocente.
Muitos julgaram-me de louco, mas ninguém sabe realmente o significado da razão ou da loucura, do amor ou do ódio... Onde está escrita a receita do amor, da felicidade, quais as quantidades certas de sentimentos que devemos usar, para que tudo seja perfeito? Será que existe, ou cada ser tem a sua própria receita, e ninguém o pode julgar?

Sinto-me um estranho naquele emaranhado de gente que não reconheço, naquela cidade que Amélia teima em insistir que é a minha e que nada me diz.
Como posso ter vivido cerca de 30 anos naquele sítio que não reconheço? O que se passa comigo? O que foi feito da minha memória? Porque será que do meu passado só recordo uma face, um sorriso, o teu sorriso?! É perdido nestes meus pensamentos que ouço finalmente uma voz que me é familiar, ouço ao fundo o meu nome que ecoa por entre a multidão que me envolve… “ Guilherme… Guilherme, espera por mim! Vais perder-te!”.
Nesse momento ao ouvir ao longe o meu nome, exclamado com tamanha dor, acordo do transe em que me encontro, olho para trás e vejo a Amélia, ela acenava-me com um grito de desespero, com um soluçar de quem me procurava intensamente, fazia muito e infindável tempo. Recordava aquele chamamento dos tempos em ela me protegia de todo e qualquer sofrimento, do tempo em que ela sarava as minha feridas, pois, desde que fugira do hospital que ela sempre me buscara e com um aperto no coração não me conseguia encontrar.

Amélia tinha sido quem me tinha criado, quem me tinha preparado para a vida, quem me tinha apresentado a minha primeira namorada, quem me tinha pedido por favor para ser feliz.
Olhei-a nos olhos, sorri, debrucei-me sobre os meus joelhos, com as minhas mãos sujas limpei os meus olhos cansados de não dormir, de não comer e de chorar.

Dois segundos tinham passado, quando, por entre os meus dedos, ouvi o nome da minha irmã Amélia, invocado pela voz forte do seu marido, no seu chamamento havia o estremecer de uma vida, uma vida que estava naquele preciso momento a ser levada pela inércia de uma carro que ali passava.

Nesse momento tudo parou à minha volta, todas as pessoas, todos os carros, todos os pássaros, tudo ficou imóvel, somente uma película rodava na minha frente. O filme onde tudo voltou a ser como era antes, antes daquele terrível acidente, que tinha ocorrido fazia naquele dia, precisamente quatro meses.

Entretanto, tudo voltava a fazer sentido, a cidade, as pessoas, o café do Luisito, a escola ali ao virar da esquina, onde estudavam o João e a Carolina, mas acima de tudo recordei aquele rosto que existia como o brilho de um sol, consegui dar um nome aquele rosto, era Ana ela chamava-se Ana e era a minha mulher, ela tinha aquele tal sorriso, o mais lindo que eu alguma vez tinha visto, e agora sim entendia e encontrava justificação para tudo o que havia sonhado, para todos os meus pesadelos e era somente ela, ela que tinha morrido naquele acidente de avião quando juntos viajávamos para a Austrália...